segunda-feira, 20 de setembro de 2010

O que é a Memória, como avaliá-la e como reabilitá-la – parte 1

Se pretendermos entender o que é a memória humana, primeiramente precisamos explicar de que paradigma de memória estamos falando e principalmente de qual memória queremos investigar. Podemos falar sobre o enfoque anatomo-funcional (paradigma médico: local no cérebro e respectiva função envolvida), do fenomenológico (paradigma psicológico: o que é lembrar, o que é esquecer, qual a diferença entre lembrar-se de um nome e de andar de bicicleta), e do enfoque conceitual (paradigma filosófico: definição formal da memória, o que é e o que não é memória). Portanto este passo de procurar entender o que é memória, como ela funciona, quais características são comuns quando ela falha, e que tipos de comportamentos são esperados de alguém que tenha uma lesão ou degeneração na memória, constitui o passo inicial para compreender as possibilidades ou as dificuldades que o Neuropsicólogo encontrará em seu trabalho tanto no momento da avaliação quanto na reabilitação da memória.

Pois bem, o primeiro passo que temos que dar envolve a necessidade de procurar definições conceituais do que chamamos memória. Para Luria (1981) memória pode ser entendida como o registro, a conservação e a reprodução dos vestígios da experiência anterior, registro esse que dá ao homem a possibilidade de acumular informações e operar com estes vestígios após o desaparecimento dos fenômenos que provocaram os mesmos, e afirma ainda, que todo o reforço dos conhecimentos e habilidades e a capacidade de aproveitá-los, pertencem à área da memória. Gleitman, et al (2003) acrescenta que além dessa capacidade de organizar idéias e acontecimentos do passado, e do armazenamento das experiências vivificadas diariamente, um fato essencial da memória é a sua capacidade de permitir a construção da vida com sentido do eu, integrando informações do passado remoto de nossa história, com informações do presente vivenciado, integrando de forma "online" (momento a momento) passado, presente e futuro.

A maioria dos cientistas concorda então, que um processo comum a memória seria a capacidade de adquirir, reter e recuperar informações aprendidas e que esse processo desempenharia entre outras coisas um importante papel na adaptação do individuo ao meio (Baddeley, 1986). Entretanto não podemos usar a palavra memória de forma simplificada, pois, o fenômeno é complexo e requer aprofundamento na compreensão. Uma importante pergunta que deve ser feita, diz respeito à uniformidade ou multiplicidade do fenômeno da memória; será que a memória que usamos para nos lembrar de colocar o despertador para ir trabalhar, para andar de bicicleta, ou lembrar o nome de uma pessoa envolve apenas um tipo de memória? Não!! Na verdade existem vários subtipos de memória que podem ser classificados quanto à sua duração (curto ou longo prazo), ao seu conteúdo (explícita ou implícita) e ainda subclassificações quanto ao tipo da informação (semântica ou episódica).


Quanto a duração:


a) Memória de curto prazo

A memória de curto prazo é definida como tendo um espaço limitado de armazenamento, permitindo que o imediato seja guardado, podendo ser rapidamente esquecidos. Ex: O horário da sessão de um filme no cinema.

Segundo Cohen, 1997 (apud Bueno et al, 2004), para os psicólogos cognitivos essa memória é subdividida entre imediata e de trabalho; sendo a primeira a que se refere ao que é mantido na memória de forma ativa, que se não for recapitulada, dura cerca de 30 segundos, ocupando assim o fluxo do pensamento apenas no momento presente. Enquanto que, a segunda é "responsável pelo armazenamento de curto prazo e pela manipulação ‘online' das informações necessárias para a estruturação do pensamento, possibilitando uma interface entre linguagem, memória de longo prazo e ação (planejamento e solução de problemas). Ainda Bueno et al, (2004), postula que a memória de trabalho é um sistema integrado no qual o sub-sistema mais importante é denominado executivo-central, sistema esse que controla a atenção e o processamento de tarefas cognitivas. Os outros sub-sistemas são a alça fonológica e o esboço vísuo-espacial, que têm a função de armazenar informações acústicas e visuais respectivamente.


b) Memória longo prazo

Caracterizada pela capacidade possivelmente ilimitada de armazenamento, permitindo que inúmeros acontecimentos, informações, lugares, sabores, etc., fiquem guardados por um longo período ou até mesmo pelo resto da vida. Ex: Quem descobriu o Brasil?.


Quanto ao conteúdo:

A memória de longo prazo pode ser dividida quanto ao seu conteúdo em duas formas: memória declarativa (explicita) e memória de procedimento (implícita).

a) Memória declarativa: Segundo Bueno et al (1993), essa memória diz respeito à tentativa de recordar (conseguindo ou não), fatos, ou informações previamente vivenciadas, permitindo assim a associação de idéias, deduções e possíveis criação de idéias. É chamada de memória declarativa, pois diz respeito à lembrança declarada, ou seja, trazida à mente verbalmente ou como uma imagem. A memória declarativa é dividida, quanto ao seu tipo de informação, em semântica e episódica. De acordo com Tulving apud Bueno et al, (2004), a memória semântica é a que possibilita o armazenamento de conhecimentos gerais, conhecimento impessoal dos acontecimentos do mundo (por exemplo: Quantos dias têm uma semana); já a memória episódica se refere ao armazenamento de um acontecimento especifico vivenciado, permitindo que o indivíduo se lembre dos momentos passados, recordando informações (ex: cor do vestido que você usou na sua festa de 15 anos).

b) Memória de procedimento (implícita): É a capacidade de aprender gradualmente habilidades percepto-motoras ou cognitivas através da repetição da atividade. O bom funcionamento desta nos permite, por exemplo, resolver um problema repetido de maneira mais rápida, mesmo não se lembrando de tê-lo vivido anteriormente, é uma lembrança não consciente. E por ser implícita, essa memória só pode mostrar resultados através do desempenho de atividades cognitivas, motoras e perceptuais, nas quais o resultado do que aprendemos é exercido automaticamente (ex: andar de bicicleta, digitar no computador com as duas mãos).

Pois bem, feita a devida apresentação do modelo de memória para a psicologia cognitiva que acreditamos ser o mais interessante para o Neuropsicologo basear seu trabalho de investigação cognitiva e posterior trabalho de reabilitação, acredito que possamos assim ter sedimentado a base para o nosso próximo texto que trata das queixas de memória que se apresentam na clínica neuropsicologica.



Referências Bibliográficas


Andrade, V., Santos, F., Bueno, O. Neuropsicologia Hoje. São Paulo: Editora Artes Médicas Ltda, 2004

Baddeley A., D. Working memory. New York: Oxford University Press, 1986.

Gleitman, H., Friedlund, J., Reisberg, D. Psicologia. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003.

Luria, A., R. Fundamentos de Neuropsicologia. LTC Editora S.A., 1981

Filosofia da mente e neurociência: Visão materialista do mental

Este texto foi produzido a partir de diversos estudos e discussões realizadas no Grupo de Pesquisa em Filosofia da Mente e Ciências Cognitivas da cidade de Rio do Sul/SC. O principal objetivo deste trabalho é o de apontar brevemente o foco principal desta área do conhecimento tão ampla, fazendo uma interface entre a perspectiva do monismo-materialista e a Neurociência.

A Filosofia da Mente tendo seu marco inicial no final da década de 1940 e início da década de 1950 continua caminhando em direção as descobertas contemporâneas acerca da natureza da mente. Esta área relativamente nova possui em seu leque de discussões uma ampla interlocução com as diversas áreas do conhecimento como a Psicologia, a Neurociência, a Lógica, a Linguística e as Ciências Cognitivas. Um grande propulsor destas discussões filosófico-científicas foi Gilbert Ryle, que a partir de sua obra publicada em 1949 The concept of mind impulsionou outros pesquisadores e teóricos a tentar solucionar problemas milenares como a “mente”, “subjetividade” e “inteligência”.

A partir daí outros teóricos como, Daniel Dennett, John Searle, Donald Davidson, Thomas Nagel e o casal Churchland, começaram a desenvolver seus trabalhos das discussões até hoje vigentes. A partir de questões ainda não completamente resolvidas, foi possível verificar que muitos filósofos da mente ainda lutam por uma definição de mente e dissolução do problema mente-corpo, e como resultado disto, para a resolução de termos advindos da Psicologia. Mais precisamente, a Filosofia da Mente preocupa-se com a análise conceitual de teorias por meio de uma investigação científica. Como resultado de discussões surgidas no escopo desta área do conhecimento voltadas para o esforço em desfazer a idéia de termos mentalistas, posicionamentos foram se configurando, e dentre eles, a postura monista ou como alguns preferem chamar, o materialismo, tem sido o grande desafio para os cientistas da mente.

A sustentação de seus argumentos filosófico-científicos vem sendo demonstradas pela refutação de adeptos de posições dualistas e agnósticas a partir das descobertas da Neurociência. Aparentemente, a posição monista não estaria enfrentando maiores problemas no que se refere as suas observações de métodos experimentais confiáveis. Tampouco, preocupa-se com o que chamamos de problema da causação mental, uma vez que esta se baseia na idéia de que estados mentais causam alguma reação física no cérebro, como acreditam os dualistas. No entanto, o monismo percebe sua teoria como aquela que conseguiria resolver todos os problemas encontrados pela Filosofia da Mente, inclusive os conceituais, o que mostra sua ingenuidade ao esquecer-se de que, como nos fala o Prof. João Teixeira, ao produzir ciência não podemos separar qualquer feito científico dos termos e conceitos utilizados para explicá-la. Ou seja, o fazer científico deve se pautar em comprovações empíricas cujos resultados não comprometam a linguagem que se utiliza para argumentá-la. Sobretudo, não bastam haver investigações científicas sem que para isso haja uma análise conceitual do seu objeto de estudo.

Nesta mesma linha de pensamento, as posições materialistas têm em comum a idéia de que não é possível fazer uma divisão entre mente e cérebro. Dentre elas pode-se citar o Materialismo Eliminativo, Reducionista e Teorias da Identidade em que cada uma defende o conceito de mente a partir de uma perspectiva monista, isto é, consideram que mente e cérebro não podem ser consideradas como substâncias diferentes. Tais posições acreditam que a Neurociência poderá em um futuro não muito distante comprovar seus postulados, quais sejam a de encontrar todos os correlatos neurais para os estados mentais. Teríamos a certeza de quais regiões cerebrais estão envolvidas quando pensamos em uma vaca amarela, como também, olhando para o cérebro (através de fMRI ou PET-Scan, SPECT) afirmar que o sujeito estava, de fato, pensando em tal conteúdo! Dessa forma, a Neurociência é a ciência do cérebro que promete enterrar todas as dúvidas geradas pela ciência filosófica. Com o advento de técnicas de neuroimagem será possível pôr em xeque qualquer dúvida gerada pela linguagem psicológica, ou para alguns a folk psychology. Partindo da idéia de que todo o comportamento possui uma base biológica, todas as sensações subjetivas poderão ser traduzidas em estados físicos ou cerebrais. Texto de Luciane Simonetti e Thiago Strahler RiveroSobre os autores: Luciane Simonetti é graduanda do curso de Psicologia da UNIDAVI / Rio do Sul-SC e membro pesquisadora do Grupo de Pesquisas em Filosofia da Mente e Ciências Cognitivas. Atualmente pesquisa sobre Filosofia da Mente, Neurociência, Psicologia Cognitiva e Evolucionismo. Thiago Strahler Rivero é mestrando pela Universidade Federal de São Paulo / UNIFESP ...


Referẽncias

CHURCHLAND, Paul. Matéria e Consciência: uma introdução contemporânea à Filosofia da Mente. Tradução: Maria Clara Cescato.

UNESP: São Paulo, 2004. TEIXEIRA, João de Fernandes. Mente, cérebro e cognição. Vozes: São Paulo, 2003.

______, Filosofia e Ciência Cognitiva. Vozes: Petrópolis, 2004.

______. Como ler Filosofia da mente. Paulus: São Paulo, 2008.

Cap 2 - História da Neuropsicologia: De Descartes à Gall

A busca do órgão unitário da alma.

A história caminha sempre; junto a ela diversas formas de compreensão do cérebro, tanto anatomicamente, quanto fisiologicamente (suas funções), foram surgindo.

Vimos em nosso último texto que no inicio do século XVI, Vesalius (1514 – 1564) traz grandes contribuições para a anatomia cerebral, principalmente no uso do método cientifico observacional, substituindo as crenças dogmáticas (Religiosas e Filosóficas) estabelecidas na época de Galeno, mudando assim a compreensão do homem renascentista a respeito do cérebro.

Entretanto, a metade do século XVII e o início do século XVIII vêem nascer uma busca, de vários cientistas, pela localização de um centro cerebral da alma (=mente), local esse que serviria como centro catalisador das experiências e vivencias humanas. Importante ressaltar que essa busca foi muito mais filosófica do que baseada em investigação clinica e dados científicos.

Como cita Walsh (1994), temos como ícone maior desta busca a figura de René Descartes, que ao selecionar a glândula pineal
como esse centro integrador, tinha como argumento principal a localização desta glândula em relação a cérebro.

Para Descartes:

“... por ela estar estrategicamente situada entre os canais anteriores e posteriores, poderia assim, tanto influenciar como ser influenciada pelos movimentos dos espíritos entre esses canais.”
(Walsh 1994, p.13)

Esta teoria admitia que a alma (denominada res cogitans, “a coisa pensante”) era uma entidade livre, não substantiva, imaterial, indivisível e o corpo (res extensa, “extensão da coisa”) uma parte mecânica, material, divisível. Embora diferentes, a alma interagia com o corpo por meio da glândula pineal, que também funcionava como centro de controle (Pinheiro, 2005).

Sendo assim, Descartes acreditava que as experiências dos órgãos dos sentidos precisavam ser unidas em algum órgão ou glândula, dentro do cérebro, para que desta maneira alcançassem a alma.

Muitos outros escritores da época acreditavam nesta teoria de um corpo único e buscavam encontrá-los em outras partes do cérebro, como o Corpo striatum (para Willis), a matéria branca (para Vieussens) e o corpo caloso (para Lancisi).

A história mostrou que a idéia de um corpo único não foi a verdade prenunciada por Descartes, entretanto Walsh (1994) acredita que o fato de tantas pessoas estarem preocupadas com a busca de uma estrutura vital, não anula boas observações e tratados feitos durante esses séculos.

Primeiros estudos localizacionais e as faculdades psicológicas

O período que deu seqüência a idéia de unidade central de experiência consciente abriu caminho para o estudo das faculdades psicológicas, que dividia os processos mentais em diversas habilidades separadas e especializadas permitindo assim o início das buscas pelo substrato neural de cada faculdade da mente.

Esse sistema que teve como principal representante Franz Joseph Gall (1758), ficou conhecido como Frenologia. Na sua busca, Gall relacionou 27 “faculdades afetivas e intelectuais” que são diretamente relacionadas com partes discretas do cérebro, entre elas, benevolência, agressividade, sentido da linguagem, amor parental, etc; este número foi posteriormente aumentado (Pinheiro, 2005). Mesmo levando-se em conta todos os erros e as comprovações de sua como teoria científica, a frenologia durou por mais de um século, mostrando-se assim, mais fértil que a anterior noção de “um simples órgão cerebral” (Walsh, 1994).

As idéias de Gall foram primeiramente divulgadas em Viena no fim do século XVIII e logo foram seguidos por Johann Spurzheim (1776), pensador de suma importância para Frenologia e que foi o verdadeiro responsável por desenvolver uma idéia moralizadora das idéias de Gall. Mais a frente frenologia, junto com a Antropometria, foi usada como ciência auxiliar para embasar idéias da Eugenia¹. No nazismo essas idéias “cientificas” foram apoderadas e o estudo das dimensões do crânio, orelha e nariz, auxiliaram a verificação “científica” de traços considerados como indicadores da inferioridade ou degenerescência biológica no nazismo.

Para os cientistas que acreditavam na frenologia a idéia era que o cérebro era composto por um numero de órgãos separados, únicos, que controlavam um igual número de faculdades mentais.

O desenvolvimento desses órgãos cerebrais levava, segundo os autores, a um aumento de proeminências individuais no crânio, e que um processo de crânioscopia (ou apalpação) das proeminências, poderia levar a um conhecimento da natureza das propensões individuais.

Gall fez muitos estudos e descobertas a respeito do substrato neuro-anatomico, deu ênfase na importância do córtex (até aquele momento apagado), entretanto tudo isso ficou em segundo plano por conta de sua fisiologia especulativa, que comparada à ciência atual parece muito difícil de conceber, mas que sem dúvida deu energia e permitiu o pensamento em sua época.

Outro aspecto importante da frenologia foi o estimulo a anotação cuidadosa de todos os dados anatomo-clinicos e suas correlações, possibilitando assim o início das primeiras idéias sobre as localizações das funções cerebrais. Além disso, a frenologia trouxe boas contribuições na luta contra a noção de áreas silenciosas do cérebro (porções de massa que não teriam nenhuma função no cérebro), mostrando que muitas áreas quando lesadas, podiam não trazer problemas visíveis (motores), mas sim severas dificuldades de personalidade.

Do lado dos críticos da frenologia, encontramos Flourens como seu mais influente argüidor, tendo a crença central que as funções mentais não dependiam de órgãos ou partes particulares do cérebro e sim dele como um todo, não como um órgão único, mas sim tendo suas funções únicas funcionando em harmonias de um todo.

O trabalho que levou Marie-Jean-Pierre Flourens (1794); a postular o conceito de integração dentro do cérebro, foi realizado com pássaros que sofriam ablações (cirurgias de abertura) em seus cérebros, que após essa abertura uma recuperação sempre ocorria, irrestritamente ao local da lesão, levando-o a crer que existia uma capacidade de partes saudáveis assumirem controle de áreas danificadas, conceito hoje chamado de equipotencialidade.

¹ Eugenia é um termo criado por Francis Galton (1822-1911), no livro, "Hereditary (1865) que a definiu como o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer as qualidades raciais das futuras gerações seja física ou mentalmente


Bibliografia

Walsh, K. (1994). Neuropsychology: A clinical approach. (3rd.ed.) London, U.K: Churchill Livingstone.

Pinheiro, M. (2005). Aspectos históricos da neuropsicologia: subsídios para a formação de educadores. Educar, Curitiba, n. 25, p. 175-196, Editora UFPR.

Cap 1 - História da Neuropsicologia: Do Papiro de Smith até Vesalius

Em nosso primeiro artigo tentamos explicitar o campo de atuação da Neuropsicologia, bem como qual o papel do Neuropsicólogo, quais seus pontos fortes e sua maneira particular de comunicação com outras áreas do conhecimento. Nosso objetivo neste novo trabalho é poder pensar sobre as bases históricas e a evolução da Neuropsicologia através do tempo e das diversas civilizações, culminando assim na Neuropsicologia que discutimos na coluna anterior.

Os primeiros tratados Egípcios

A história do surgimento da medicina está inteiramente relacionada com o surgimento das primeiras grandes civilizações da humanidade. O primeiro grande tratado médico escrito pelo homem foi encontrado no Egito, e data do século 17 a.C, mas contém referencias à textos escritos até 3000 a.C. O papiro, que foi chamado de “O papiro cirúrgico de Edwin Smith”, foi adquirido por Edwin Smith, em 1862, na cidade de Luxor, continha as mais antigas descrições anatômicas, fisiológicas e patológicas das mais diversas doenças, incluindo oito estudos de danos cerebrais fazendo correlação entre funções cerebrais e suas localizações. Foi o primeiro registro em que palavras como “cérebro”, “meninges” e “liquido cefaloraquidiano”, apareceram.

O papiro contém o relato de 48 casos de observação, incluindo casos de traumatismos cranianos e de pescoço. Segundo Walsh (1994), apenas em 1930 que o papiro foi traduzido e comentado, abrindo assim um caminho em direção à “corticalização” das funções com a descrição dos danos cerebrais. De todos os casos descritos, os oito primeiros são especificamente relacionados, a lesões na cabeça e no cérebro, dos quais a maioria é de pessoas civis que foram feridos em quedas (talvez durante a construção de monumentos e prédios) ou vítimas de batalhas, já que muitos dos ferimentos parecem ter sido causados por porretes, punhais e lanças, este fato sustenta o que poderia ser o primeiro relato de contribuições de estudos de ferimentos de guerra para o entendimento das relações cérebro-comportamento, uma fonte investigação que tem sido de enorme importância para a ciência atual.

Em cada caso algo importante foi visto e entendido. Por Exemplo: Caso 2 – Traumatismo Craniano com perfuração craniana.Caso 4 – Convulsão por toque no cérebro exposto.Caso 6 – Descrição das meninges e do liquido cérebro-espinhal.Caso 8 – Descrição de uma lesão e da conseqüente mudança de caminhar (hemiparesia) e do olhar.Caso 12 – Descrição de uma lesão Temporal.

Entretanto Walsh (1994) ressalta que diversos erros, enganos e má interpretação ainda estavam presentes e podem ser claramente observáveis no papiro, como por exemplo a observação de que as lesões e as seqüelas ocorriam no mesmo lado, ou seja uma lesão no lado direito do cérebro, geraria uma hemiparesia do próprio lado direito do corpo, fato esse que se sabe não ser correto por conta do efeito contralateral.

Outro papiro Egípcio importante é o de Ebers, que relata casos que envolvem a causa orgânica do esquecimento, depressão e outras condições clínicas importantes. A prática Cirúrgica e as Civilizações Sul-Americanas. A história do cérebro e dos comportamentos, sempre esteve intimamente relacionada com praticas de abertura cirúrgica do cérebro e procedimentos neurocirúrgicos de craniotomia. Essa cirurgia, extremamente difícil, tem sido feita desde o período paleolítico até os dias atuais. Importante notar que nem todas craniotomias foram feitas por problemas de traumatismo cranianos, e que evidências de cérebros que passaram por trepanação (Procedimento médico muito realizado, com o objetivo de eliminar os maus espíritos e demônios do paciente, mas sem nenhum significado terapêutico prático) foram descobertos por toda a Europa, África, América do Sul, América do Norte e ilhas do Pacífico.

Os instrumentos mais antigos encontrados, para tais cirurgias eram compostos de pedras, mas com o advento de novas tecnologias começam a serem empregados instrumentos feitos de ferro e bronze. Segundo Walsh (1994), o uso desses instrumentos pelos Paracas (3000 a.C.) e pelos Incas (até 1600 d.C.), ambas civilizações da América do Sul, foram relatados as centenas pelos arqueólogos, que relatam os mais diversos exemplos de formas de instrumentos, de locais de cirurgias no crânio e de tipos de cortes no cérebro. Mesmo essa sendo uma das mais difíceis cirurgias e mesmo existindo o enorme risco de morte pelas rudimentares técnicas empregadas, muitos pacientes sobreviviam e voltavam a viver em comunidade, fato esse atestado pelos crânios encontrados em sítios arqueológicos, muitos dos quais continham regeneração óssea em volta da área da cirurgia, atestando assim uma sobrevida do sujeito.


A Grécia Clássica.

Hipócrates foi o escritor mais citado desta época, e mesmo com a pouca quantidade de escritas citando cérebro (fato esse relacionado à aversão Grega com a dissecação de cadáveres), pode através do estudo de crânios e cérebro de animais, concluir que a alma, ou as funções mentais estava localizada no crânio, demonstrando assim uma grande capacidade de observação dos pacientes. Em seu famoso livro, Sobre a doença sagrada, existe o mais antigo relato sobre a epilepsia, doença essa que ele não considerava mais sagrada do que qualquer outra doença, tendo sua causa natural como qualquer outra enfermidade.


"It is thus with regard to the disease called Sacred [epilepsy]: it appears to me to be nowise more divine nor more sacred than other diseases, but has a natural cause from the originates like other affections. Men regard its nature and cause as divine from ignorance and wonder..."
—On the Sacred Disease

Outros artigos de Hipócrates observam que lesões em um hemisfério provocavam espasmos. Hipócrates ainda advertiu sobre uma possível cegueira quanto à questão de danos na área temporal do crânio, causar uma paralisação no lado contralateral, fato esse que difere da forma de pensar dos Egípcios, e que hoje foi comprovado como a forma correta de seqüela de determinadas lesões. Idade média e a Doutrina Celular No século 4 d.C., os padres Nemesius e Santo Augustinho desenvolveram a doutrina celular das funções cerebrais.

Essa doutrina apregoava que os processos mentais, ou as faculdades da mente estavam localizadas em câmaras ventriculares no cérebro, feitas de células; os ventrículos laterais formando as 1 células, o 3 ventrículo formando a 2 célula, enquanto o quarto ventrículo formava a 3 célula. Cada ventrículo tinha sua própria especificação com relação a sua função: Primeiro ventrículo = Fantasia e Imaginação.Segundo ventrículo = Cognição e Estimação.Terceiro ventrículo = Memória. Essa doutrina que perdurou por mais 1000 anos, teve sua base nas idéias de Aristóteles e Galeno. Para Aristóteles as atividades mentais eram divididas em um grande número de faculdades de pensamento e julgamento, e na doutrina celular essas faculdades eram alocadas nos ventrículos. Já Galeno contribui com sua teoria do gás psíquico (Psico Pneuma), na qual o líquido presente nos ventrículos pulsava pelo cérebro em direção ao corpo, alimentando e levando o corpo a se comportar, sendo importante para as funções do corpo e do cérebro.

A Renascença Vesalius e seu De Humani Corporis Fabrica Com os estudos de Vesalius no séc. XVI, veio à era das observações mais rigorosas e cientificas, superando assim as imposições dogmáticas da época de Galeno. Em 1543 foi publica sua obra prima, De humani corporis fabrica e sua volume anexo Epítome, ambos os trabalhos foram considerados o corpo do espírito da Renascença e muitos consideram o fator mais importante para o estabelecimento da moderna era de pesquisa e observação. Vesalius foi um grande pupilo de Sylvius, que era conhecido como o maior seguidor de Galeno. Apesar de toda admiração pela teoria de Galeno, Vesalius não seguia de forma cega à teoria de Galeno, e sim observava, testava e pesquisa a fim de comprovar os postulados. Esse espírito crítico e científico foi o grande mérito de Vesalius, através do uso do método observacional ele colocava em prova para saber onde as observações variavam em relação ao dogma aceito.

Entretanto, os avanços da anatomia feitos por Vesalius em seus tratados, não eram concorrentes com os avanços em conhecimento das funções cerebrais e essa discrepância entre anatomia e fisiologia continuaria até o próximo século.


Bibliografia

Walsh, K. (1994). Neuropsychology: A clinical approach. (3rd.ed.) London, U.K: Churchill Livingstone.

Hipocrates.(2003). Aforismos. São Paulo: Martin Claret.

Neuropsicologia: O que é e como se faz?

Hoje a Neuropsicologia é sem sombra de dúvida uma área da Psicologia que está em franca expansão. Grupos de estudo, cursos rápidos, pós - graduação tanto Lato quanto Stricto Sensu estão pipocando pelo Brasil, entretanto ainda existe uma grande quantidade de profissionais da área da saúde, incluindo.

O intuito desta Coluna é poder trazer à luz discussões teóricas, filosóficas, históricas e práticas, o campo da Neuropsicologia. Neste primeiro artigo abordaremos o que é a Neuropsicologia, como ela se define teoricamente e qual o papel do Neuropsicólogo na prática profissional.

Segundo Luria (1981), a Neuropsicologia é a área específica da Psicologia que tem como objetivo peculiar a investigação do papel de sistemas cerebrais individuais em formas complexas de atividades mentais.

Assim Luria acreditava que o propósito da Neuropsicologia era:"...generalizar idéias modernas concernentes à base cerebral do funcionamento complexo da mente humana e discutir os sistemas do cérebro que participam na construção de percepção e ação, de fala e inteligência, de movimento e atividade consciente dirigida a metas." ( Luria,1981, p. 4).

Outros autores como Gil (2002) e Mello (1996) acreditam que a Neuropsicologia visa o estudo dos distúrbios cognitivos, emocionais e comportamentais, bem como o estudo dos distúrbios de personalidade provocados por lesões do cérebro, que é o órgão do pensamento e, portanto, a sede da consciência.

A Neuropsicologia surgiu no final do século XIX, início do século XX, estudando os soldados feridos de guerra, que tinham lesões cerebrais e alterações de comportamento, memória, linguagem, raciocínio - o que possibilitou maior compreensão do papel do cérebro comandando esses processos. Contudo, somente no final do século XX, que ganhou maior reconhecimento. Os anos 90 ficaram conhecidos como a "Década do Cérebro", uma vez que o aprimoramento de técnicas de neuroimagem possibilitou a confirmação das interações entre as funções cognitivas e as áreas cerebrais.

Segundo Andrade & cols. (2004), sua criação deu-se a partir da convergência de várias ciências como, por exemplo: a Psicologia experimental, destacando a importância do estruturalismo (Wundt), funcionalismo (James) e behaviorismo (Watson e Skinner), com a Neurologia focada nas alterações comportamentais e a fisiologia. A Psicologia experimental buscava a compreensão dos comportamentos humanos, das diversas formas de aprendizagem e das estruturas cerebrais responsáveis pelas funções cognitivas. A Neurologia das alterações comportamentais, por sua vez, buscava compreender como as lesões cerebrais se relacionavam com o funcionamento das cognições e dos comportamentos dos sujeitos.

Assim sendo com o estabelecimento da Neuropsicologia como campo integrador dessas multi - áreas, um novo e mais acurado método de investigação individual do sistema nervoso e suas complexas formas de atividades foi desenvolvido.

Além de elucidar os mecanismos de ação por traz das funções cognitivas e dos comportamentos, a Neuropsicologia tem um papel clínico bem definido que é o de atuar no diagnóstico e conseqüente estabelecimento de programas reabilitatórios para indivíduos com qualquer tipo de seqüela neuronal.

O papel do Neuropsicólogo

O Neuropsicólogo hoje é um profissional que atua em diversas instituições, desenvolvendo atividades como diagnóstico, reabilitação, orientação à família e trabalho em equipe multidisciplinar. Os principais locais onde o Neuropsicólogo é requisitado incluem: instituições acadêmicas (pesquisa, docência), hospitais (avaliações pré e pós-cirúrgica), juizados (avaliação e perícias), clínicas (avaliação, reabilitação e pesquisa), consultórios privados e atendimentos domiciliares (reabilitação).

Além disso, fornece dados objetivos e formula hipóteses sobre o funcionamento cognitivo, atuando como auxiliar na tomada de decisões de profissionais de outras áreas, fornecendo dados que contribuam para as escolhas de tratamento medicamentoso e cirúrgico.A Neuropsicologia tem um histórico grande de estudo de indivíduos que tinham transtornos e seqüelas que envolviam o cérebro e a cognição. Ainda hoje a grande parte da população que procura um Neuropsicólogo vem encaminhada por Psicólogos, Psiquiatras e Neurologistas. Essa população de pessoas que sofreram algum tipo de transtornos e/ou seqüelas, é a grande maioria, entretanto existe uma pequena parcela que procura o Neuropsicólogo por preocupações de desempenho cognitivo, como por exemplo, um esquecimento, ou uma falta de concentração em atividades, gerando assim um campo que poderia ser chamado como "Neuropsicologia Preventiva".

Em 2004 o Conselho Federal de Psicologia reconheceu a Neuropsicologia como especialidade da Psicologia (Resolução CFP Nº 002/2004), com isso algumas diretrizes sobre a Neuropsicologia foram escritas pela primeira vez de forma reconhecida por um órgão regulador do Psicólogo Brasileiro.

Segundo o CFP existem 3 campos de atuações que são fundamentais na profissão do Neuropsicólogo:

1. Diagnóstico - Através do uso de instrumentos (testes, baterias, escalas) padronizados para avaliação das funções cognitivas, o Neuropsicólogo irá pesquisar o desempenho de habilidades como atenção, percepção, linguagem, raciocínio, abstração, memória, aprendizagem, habilidades acadêmicas, processamento da informação, visuoconstrução, afeto, funções motoras e executivas. Esse diagnóstico tem por objetivo poder coletar os dados clínicos para auxiliar na compreensão da extensão das perdas e explorar os pontos intactos que cada patologia provoca no sistema nervoso central de cada paciente. A partir desta avaliação Neuropsicológica é possível estabelecer tipos de intervenção, de reabilitação particular e específica para indivíduos e/ou grupos de pacientes com disfunções adquiras ou não, genéticas ou não, primariamente Neurológicas ou secundariamente a outros distúrbios (Psiquiátricos).

2. Tratamento (Reabilitação) - Com o diagnóstico em mãos é possível realizar as intervenções necessárias junto aos pacientes, para que possam melhorar, compensar, contornar ou adaptar-se às dificuldades. Essas intervenções podem ser no âmbito do funcionamento cognitivo, ou seja, no trabalho direto com as funções cognitivas (memória, linguagem, atenção, etc.) ou com um trabalho muito mais ecológico, no ambiente de convivência do paciente, junto de seus familiares, para que atuem como co-participantes do processo reabilitatório; junto a equipes multiprofissionais e instituições acadêmicas e profissionais, promovendo a cooperação na inserção ou re-inserção de tais indivíduos na comunidade quando possível, ou ainda, na adaptação individual e familiar quando as mudanças nas capacidades do paciente forem mais permanentes ou de longo prazo.

3. Pesquisa - A pesquisa em Neuropsicologia envolve o estudo de diversas áreas, como o estudo das cognições, das emoções, da personalidade e do comportamento sob o enfoque da relação entre estes aspectos e o funcionamento cerebral. Para tais pesquisas o uso de testes Neuropsicológicos é um recurso utilizado, para assim ter um parâmetro do desempenho do paciente nas determinadas funções que estão sendo pesquisadas. Atualmente o uso de drogas específicas, para estimulação ou inibição de determinadas funções, tem sido usadas com freqüência para observar o comportamento e o funcionamento cognitivo dos sujeitos em dadas situações. Outra técnica que muito tem contribuído nas Neurociências e com grande especificidade na Neuropsicologia é o uso de neuroimagem funcional por Ressonância Magnética (fMRI) e tomografia funcional por emissão de pósitrons (PET-CT) que permitem mapear determinadas áreas relacionadas a atividades específicas, como por exemplo recordação de listas de palavras durante o exame. Portanto, fica claro que a Neuropsicologia é um campo de trabalho e de pesquisa emergente, tanto para a Psicologia, quanto para as Neurociências, avançando e contribuindo de forma única para a compreensão do modo como pensamos e agimos no mundo.

Referências

ANDRADE, V.M., SANTOS, F.H., BUENO, O.F.A. (2004). Neuropsicologia Hoje. São Paulo: Artes Médicas.

CFP - Conselho Federal de Neuropsicologia. (2004). Resolução nº 2 / 2004
Reconhece a Neuropsicologia como especialidade em Psicologia para finalidade de concessão e registro do título de Especialista. http://www.pol.org.br/legislacao/doc/resolucao2004_2.doc. Brasília.

Gil, R. (2002). Neuropsicologia (2ª. ed.). São Paulo: Santos.

LURIA, A.R. Fundamentos de Neuropsicologia. (1981). São Paulo: EDUSP.


MELLO, C.B., MIRANDA, M.C., MUSZKAT, M. (2006) . Neuropsicologia do Desenvolvimento: Conceitos e Abordagens. São Paulo: Menmon Edições Científicas.